quinta-feira, 29 de julho de 2010

QUEM É O SIDNEI?

Há uma semana estou indagando a vida deste ser que estou carregando nesta viagem para Campina Grande – Paraíba, a fim de apresentar a obra “O Trenzinho do Caipira”, obra que já vi pelo menos uma centena de vezes. Estou com certa ansiedade, por muitos motivos: um deles é que estou voltando ao palco depois de muito tempo. Minha carreira de ator a interrompi abruptamente e até pensei que nunca mais pisaria no palco. Tive alguns trabalhos que ajudaram a desenferrujar, aqui no Abração, do qual faço parte já há mais de 6 anos, mais pouca coisa de palco. Outra é a tradição da companhia com o teatro para crianças e a minha nada familiaridade com o gênero, no palco. Mas como a onça, mesmo sem pinta, continua sendo onça. Ator que já foi ator continua sendo ator. Então, vamos lá na pesquisa básica. Perguntei por várias fontes. Revistei o livro de Leonardo Bosch, que tinha dado de presente para minha companheira no começo de namoro e foi muito inspirador. Gostei de saber a historia do pássaro Eirapuru, contado a través do registro de uma cultura indígena. Mais não me respondia ao meu questionamento essencial. Talvez nunca a responda totalmente.

Meio por acaso, no dia antes de viajar, fomos comprar um caderno para minha enteada, a Carolina, no final ela não achou o caderno que queria mais eu vi um livro da Clarice Lispector “de amor e amizade” e pensei: ela que viveu tão intensamente a vida... Quem sabe? Por que não perguntá-la? Já entre as nuvens, No meio da viagem, num momento de distração parece que ela respondeu, não da forma que esperava, mas de alguma forma, ela comunicou-se com minha alma e jogou de novo a mesma pergunta como dizendo a resposta esta em você. As nuvens também ajudaram a gente literalmente voa. Então surgiram alguns fragmentos de historias que ouvi, já não sei muito bem de quem, mas acredito que isto já não seja tão importante, apenas a ouvi e comparto com vocês.

Sildnei nasceu numa aldeia nas margens do rio Pirapoy. Viveu por algum tempo numa vida pautada por ciclos de caça, plantios e colheitas. E muita dança. Ele lembra no osso as vibrações de taquaras que batiam no chão. Isto também o lembra vagamente da mãe, até hoje uma imagem fractada e muito recorrente. O retumbe no chão o lembra da pele suada e macia. Aconchegante. Traz uma vaga música uníssona e monocórdia. Na sua boca se reproduz o sabor de cinza, de batata doce com pele chamuscada com gosto cinca. Quem foi essa sua mãe? Com certeza ele não sabe. Mesmo que tenham lhe contado não sabe. Mas a memória reproduz um sorriso suave. As suas mãos lembram de um cabelo grosso e denso. Lembra um colo largo e firme. Mais nada. Também de forma turva ressoam ecos de um xaman, cantarolando uma arenga como do fundo da alma. Um som ininteligível hoje, mas fortemente marcado por maracás.

Logo lembra, com certa distância, de seu irmão de cabelo loiro, o Klaus, menino forte e irrequieto. Lembra do velório, por causa da noite fria e o mate doce. Também ficou estampado o dia do enterro. Foi o dia em que por primeira vez a solidão se apresentou na sua vida, implacável. E leva como companheiro desde então. A família após “esta desgraça”, como chamavam, mudou-se para a cidade. Lá nasceu sua irmãzinha Alicia. Dela lembra com carinho a sua doçura de tanto em tanto bate uma saudade.

Do pai (padrasto) pode após o tempo reconhecer muitas coisas, mas fica calcado, mesmo lutando contra, o dia em que repreendeu sua mãe por defender sua preguiça: “Não adianta Martita, seu sangue fala mais alto. Nasceu índio, vai continuar sendo índio.” Esse dia decidiu colocar os pés no caminho, ser dono de seu destino e poupar a mamãe de seu caráter inevitável. (Ela estará viva? Muitas vezes se pergunta).

O sobrenome que leva, herdado da família que o adotou abriu-lhe alguns caminhos. Trabalhou numa padaria e continuou estudando. A duras penas formou-se em astronomia. Mas no dia que recebeu seu diploma percebeu-se sozinho, sentiu sua alma vazia. Foi o dia em que percebeu que o título não mudava sua historia, de muito não lhe servia. No fundo continua índio com sobrenome de branco. Apenas uma mascara emprestada. Bem como tinha dito Dom Raul, seu pai.

Então, decidiu voltar para aldeia, procurar suas origens. Logo descubriu que seus pais já tinham migrado para outro plano e que ele contudo, a pesar de tudo ou mesmo acima de tudo, fatalmente já não pertencia a mundo nenhum. Inteligente que era começou a se dedicar a tudo. Arrumava eletrônicos, resolvia problemas mecânicos de maquinários e veículos. Inventava ferramentas para as necessidades que apareciam. Sempre o viam lendo, como devorando conhecimentos. Até medico era quando se precissava. Ficou conhecido por seus engenhosos inventos e por cima de tudo, sua inesgotável generosidade. Ganhou fama de “conserta tudo”. Só não conseguia consertar sua angustia, isso ninguém sabia, nem sequer era perceptível.

Apaixonou-se várias vezes, mas sempre por moças muito burguesas que invariavelmente a rejeitaram. Na frente de sua casa morava Rosa, que a diferença das outras, o cumprimentava, sempre, seja no mercado ou na padaria. Apaixonou-se também, mas o receio não deixou externar-lo. A olhava treinando e ensaiando. Nunca a viu dançar num teatro, nem mesmo em nenhum palco. Guardou por muito tempo uma página de jornal: “Rosa Magalhães estréia em Paris” dizia o título. Escreveu um poema enquanto esperava sua volta. Quando por fim conseguiu vê-la novamente, ela estava casada com o filho do dono da fabrica de calçados Villa Rica. Mastigou o poema e o jornal lentamente e engoliu devagarzinho como si consuma-se o ato de amor suave e demorado.

Ainda me faltam muitas peças neste quebra-cabeça que é o Sildnei. Não sei, por exemplo, como o entregaram aos seus pais adotivos? Por quê?

Sei que recebeu uma carta e mesmo que sem muito sentido, foi atrás de uma resposta, pois, a sua curiosidade é maior que qualquer desconfiança. A partir daqui a sua história esta na peça que convido a todos verem. Tenho certeza que alguma coisa importante poderemos descobrir todos juntos.

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